domingo, 3 de fevereiro de 2008

4 meses, 3 semanas e 2 dias

Quem procura badalhoquices, não leia este post. Este é sério. Sério demais. Ponderei seriamente se devia escrevê-lo, mas decidi que queria partilhá-lo com vocês.

A mania do cinema alternativo (que já me fez chorar uns quandos bilhetes) fez-me ir na sexta à noite ver este filme romeno, de título 4 meses, 3 semanas e 2 dias. Obviamente a sala estava cheia de lugares vazios (mas isso não me impediu, como nunca me impediu antes). Tinha lido vagamente que era sobre duas mulheres que iam tratar de um aborto na Roménia de 1987, onde tanto a contracepção como o aborto eram proibidas.

A memória é curta, e se hoje a Roménia é o país de adopção (temporária?) da Gipsy Queen e da Lula, o lugar de muitas novas oportunidades, de deslocalização de empresas que há poucos anos estavam mais a ocidente, há não tantos anos assim um monstro de nome Ceausescu governava aquele cantinho de mundo. Um monstro que se descobriu mais tarde tinha orfanatos com crianças depositadas a destinos piores que a morte.

A história do filme em si é simples: uma estudante universitária está grávida e a colega de quarto da residência vai com ela para a ajudar a abortar. Aborto mais que proibido e punido com prisão. O procedimento implica contactar o homem que fará o servicinho, arranjar um quarto de hotel e pagar-lhe (a isso iremos mais tarde).

Uma nota para as várias voltas que o filme dá, mostrando a pobreza dos cenários (o que me leva a pensar que o país ainda será assim), a corrupção de um mercado negro estudantil onde se arranjam cigarros a pílulas a sabonetes. E ainda a paranóia securitária, com bilhetes de identidade com detalhes como a residência temporária e que os cidadãos transportam consigo permanentemente. Mas a pobreza era pior ainda.

Quando no quarto do hotel com o homem que vai fazer o aborto, há uma sucessão de entendidos, mal-entendidos e subententidos: foi dito que era uma gravidez de 2 meses, mas é afinal de talvez mais de 4, as duas raparigas não são irmãs e o pagamento não é o que se pensava.

O primeiro momento em que considerei abandonar a sala deu-se no início da conversa: fala-se de como se faz o aborto e o que acontece. Não pensem que havia pormenores sórdidos a serem discutidos. Muito pelo contrário, a incerteza de tudo aquilo estava a dar cabo de mim: podia demorar 4 horas ou 3 dias, não disse bem o que era "a sonda", o que levava, dava a entender que podia sangrar muito ou pouco e que podia ou não correr mal e não disse "quanto" dóía nem muito bem o que fazer se algo corresse mal (nem o que "correr mal" significava). Ou seja, não se ficou a saber nada. Mas não devia passar-se nada, porque afinal muita gente já tinha feito isso. E não era discutível recuar.

Enquanto parte de mim queria gritar para o ecrã: POR FAVOR, NÃO FAÇAS ISSO (um gesto, para dizer o mínimo inútil, tanto por ser ficção como por não ser da minha conta), parte de mim estava a tentar controlar uma reacção física violenta que me pôs a considerar seriamente abandonar a sala.

Juro que fiquei seriamente enjoada (e isto nunca me aconteceu num filme): tive uma leve queda de tensão, e o jantar embrulhou-se-me no estómago. Considerei ir apanhar ar, eventualmente esvaziar o estómago, mas consegui ficar porque a conversa saiu daquele tema para virar para o pagamento e para o facto de o homem ter sido enganado: o tempo de gravidez não era os 2 meses combinados, mas talvez mais de quatro. A grávida embrulhou, embrulhou, o homem fez o mesmo e eu não me apercebi que o que ele estava a tentar dizer que a única coisa que queria como pagamento era comer as duas. Coisa que a amiga da grávida se apercebeu e se sacrificou pela amiga (mais tarde percebi porquê). Sorte estava com o período, pelo que não engravidaria. A devoção com que cada uma delas tomou banho depois do que fez (de novo, não se vê nada, mas sente-se a humilhação, a impotência e o desespero no ar, de tão densos que eram) é impressionante.

Nova cena que quase me fez decididamente sair pelo cinema fora: a coisa em si. É relativamente gráfico: o homem abre uma mala em que tem coisas como uma agulha de tricot (quase juro que não andaria a fazer uma camisola), uma navalha e luvas não estéreis (que palavra tão curiosa!). Tira um tubo que limpa com um líquido desinfectante (sabe Deus onde é que aquilo já esteve), insere-o na vagina da moça e usa-o para colocar um líquido qualquer que não diz o que é (e também não interessava: o aborto é para ir para a frente e é mesmo, independentemente de tudo). Acho que esta parte é bastante gráfica, mas não juro porque parte desta cena vi-a com a mão à frente dos olhos, que tirava para ler as legendas e verificar se já tinha acabado.

Quando ele sai ficam só as duas. A colega de quarto da grávida, depois da descarga de adrenalina que foi tudo o que aconteceu, fraqueja e começa a inquirir a amiga do porquê de tantas mentiras e imprecisões, ao que a outra responde de maneira vaga. Fica a dúvida se houve inocência ou intencionalidade. Mas não interessa: estão nisto juntas e é para ir até ao fim. Eu como espectadora ainda tenho um vislumbre de esperança que se decida tirar "a sonda", mas é evidente que não é isso que acontece.

As cenas seguintes são mais leves qualquer coisa: a colega de quarto da grávida vai ao aniversário da mãe do namorado. Apercebe-se (porque já se tinha apercebido, afinal é por isso que está onde está) de que poderia ser ela. Confronta o namorado com ter pensado só nele e no prazer dele um dia quando desafiou a sorte ao não interromper o coito a tempo e confronta-o com o que faria se fosse ela a engravidar. A resposta vaga e desajeitada dá-lhe a certeza que já tinha: ele nunca tinha pensado seriamente no assunto e era menino para se acobardar na hora. Fica-se a saber porque é que, apesar de todas as mentiras ela não fica zangada com a colega de quarto: se fosse ao contrário, a outra ajudá-la-ia. O que era mais que o que o namorado faria.

Ao chegar ao quarto dá-se a cena que me deveria ter impressionado mais... mas eu já estava anestesiada: o feto saiu. E de novo há pequenas subtilezas de gestos e de palavras. Se por um lado a mãe diz que "aquilo" já saiu e coloca "aquilo" no chão da casa de banho, longe da vista, quando ambas se debruçam sobre "aquilo" olham-no com um ar que é tudo menos indiferente. A imagem mostra um feto pequenino, uma criança em miniatura, mas nesta altura eu já não sinto nada por "aquilo": todo o resto do filme já me anestesiou para aquele momento.

Há um último problema: livrar-se do bebé para que não seja encontrado. A mãe pede para ela "o" enterrar (já não é "aquilo", mas "ele"), para não o deitar numa lixeira. Dignidade escusada, mas que parece significar muito. A colega de quarto pega-lhe com um carinho e um cuidado desnecessários e mete na bolsa. Claramente não planeou nada daquilo e acaba por fazer o que mandou o homem horroroso que fez aquilo: deitar de um tubo do lixo a partir do último andar, para que o corpinho se desfaça e não possa ser detectado.

No fim do filme as duas amigas estão juntas a jantar com um ar comprometido. E fazem um pacto de silêncio: nunca mais se vai falar no assunto.


Saí do filme semi-arrependida de o ter ido ver. Eu sou contra o aborto... e por assim ser votei "sim" no referendo. Faz sentido? Não! Senti-me mal das duas vezes que votei no referendo (ambas as vezes "sim"), e senti-me igualmente mal com o resultado deste (também de ambas as vezes). Porque qualquer das opções estava pura e simplesmente errada. Mas não faz sentido uma mulher ter que passar por uma coisa destas. Crime nenhum justifica esta humilhação, este perigo. Perigo de vida! No caso, a contracepção era mesmo proibida; no nosso país não era antes do referendo, mas mesmo assim as coisas acontecem. A ter que ser mesmo, que ao menos se faça uma coisa errada (no MEU ponto de vista, como EU acho que veria as coisas, mas nunca estive na situação, pelo que EU não posso pensar como reagiria) na segurança relativa de um consultório médico. Onde poderá haver alguém que faça mudar de ideias e/ou ajudar a que o mesmo não volte a suceder. Sobretudo, longe de vampiros como este homem, a que uma mulher tem que se sujeitar porque está ou pensa que está vulnerável.

Ser mulher é complicado e maravilhoso. Não creio que homem nenhum visse o filme como eu o vi: não seria capaz! Um por outro conseguiria sentir algo semelhante (são esses homens tão poucos como maravilhosos e um deles é meu pai), mas nunca se conseguiria identificar com a situação daquela maneira.

A parte boa é que eu vi o filme com um misto de optimismo e cautela (o filme abalou-me mas não me deitou abaixo, ao ponto de eu ter completado as respostas ao consultório sexual depois de chegar a casa do cinema). Por um lado, aquela Roménia já não existe. Ao ponto de eu me ter esquecido que existia. Por outro lado, a História está cheia de exemplos de retrocessos nos direitos dos homens. E então das mulheres nem se fala. Em sintonia com o livro que estou a ler e com questões que tenho acompanhado em blogues onde se aprende mais do que aqui, a febre religiosa leva o mais das vezes a que as mulheres sejam culpadas de tudo e mais alguma coisa: a mulher sempre foi a fonte de pecado, e sendo assim tem que arcar com as culpas do que efectivamente fez, do que poderia ter feito e com o que fizeram todas as mulheres.

Por outro lado, a nossa sociedade ocidental judaico-cristã mas tendencialmente laica permite avanços (digo, retrocessos) com "respeitar" culturas (porque associadas a religiões) que impoem a mulheres casamentos arranjados e usos de burkas ou simplesmente lenços na cabeça. Liberdade religiosa é uma coisa, mas temos que definir o que é liberdade pessoal. E o que é a nossa liberdade pessoal na nossa sociedade (não é o mesmo que racismo ou intolerância, mas os nossos valores). Quando é que isto evoluirá para forçarem as nossas mulheres a usarem véus também? Pode parecer rebuscado... mas também o foram regimes que já cairam e outros que ainda não.

Livre é esta sociedade em que uma mulher escreve badalhoquices, apesar de pela piada e a reserva do resto da sua vida se esconder atrás de um nickname. Quando se queixaram da nossa sociedade (que tem imensos defeitos), lembrem-se disso.

E hoje, para relaxar, vi o Sweeney Todd: tinha montes de sangue e mortes, mas era tudo a fingir e fruto da imaginação livre e delirante do meu amigo Tim Burton.

Amanhã ou depois escreverei outro post mais ligeirinho e de volta ao estilo deste blogue.

7 comentários:

ablogando disse...

É, a sordidez é algo de repelente que dificilmente se consegue conciliar com o humor, mesmo o mais negro... Há limites que em que o humor é uma questão de fio da navalha, em que é necessário um distanciamento quase desumano.

Abobrinha disse...

Joaquim

O Herr K tem um post interessantíssimo do lado dele sobre arte e como esta transmite (ou não) sentimentos e situações. Este filme é um caso desses: não podendo nem de perto nem de longe transmitir o horror da situação (o que é bom, porque eu não quero nem saber!), fez-me sentir fisicamente mal por sequer pensar no assunto.

Não há humor possível para este caso. Mas a vida não é só rir e dizer disparates.

Contudo, encontrei pontos positivos no filme: o optimismo de ver que isto é história. Passado. Não presente, não naquele lado do mundo.

O distanciamento também é bom: eu não sei se aguentaria uma situação daquelas, pelo que tenho um respeito muito grande por quem se viu em situações semelhantes. Eu não quereria estar naquela posição. Repito: mulher nenhuma devia ter que passar por aquilo.

Tisha disse...

E pronto aqui estou eu a tentar juntar os pensamentos dispersos na minha cabecita! Bem, em primeiro lugar e apesar de tudo de mau que o filme pode ter, fiquei definitivamente com vontade de o ver! Aliás, por momentos pensei estar a vê-lo através da tua descrição! Felizmente, a contracepção já é permitida e divulgada por estes lados! O Aborto (acho) que também é permitido nos primeiros 3 meses...E agora ia dizer que "dadas" como elas são, os abortos devem ser certamente muitos, até porque pelo que reti da publicidade, elas têm problemas em tomar anticoncepcionais porque não querem engordar. Mas estou demasiado "seria" pa entrar na parvalheira!

PS: A cidade continua demasiado escura, cinzenta, fria e triste!

Abobrinha disse...

Gipsy

Curiosamente esse medo de engordar está referido no filme.

A falta de sol aqui nos arredores do Porto já dá cabo da moleirinha, imagino aí!

Cheer up, moça!

Anónimo disse...

Só me sai uma palavra: foda-se...
Desculpem.
A tua posição sobre o aborto, abobrinha, é exactamente como a minha, salvo num pormenor. Votei duas vezes não. Concordo com todas as tuas posições, e poderia ter votado sim se me abstraísse do facto do aborto vir a ser financiado pelo SNS, o mesmo SNS que fechou a maternidade onde tive o meu primeiro filho, e que não me permitiu fazer uma única ecografia obrigatória num hospital estatal.
Na minha opinião (modesta), ter ou não ter um filho é uma questão de opção, não de fatalidade. E eu as minhas opções tenho-as pago todas na íntegra, sem ajudas nenhumas do estado, na pessoa do sistema nacional de saúde. Ora se eu pude arranjar 10 contos por mês para consultas de obstetrícia, mais 10 contos por ecografia de 3 em 3 meses, mais 20 euros mensais por análises de rotina, meus amigos, uma mulher que opta por abortar tem que pagar como eu paguei. Tenham dó.

Mas isto agora nem interessa nada, que eu saí da porcaria da junta de freguesia onde fui votar a chorar. Chorava porque estava grávida de uma bebé menina, na altura com vinte e tais semanas. Já dava uns pontapézinhos e fazia-se notar, e eu votei com o coração negro negro. Negro por pensar: "será que a minha bebé alguma vez vai precisar de abortar?" "Será que eu alguma vez me verei na posição de ter que abortar?"
Negro por sentir que todas as vezes que me perguntarem a opinião, eu tenho que responder Não. Abortar é errado, e um erro não conserta outro. Tudo na vida tem solução menos a morte, e esta é a minha posição basilar.
Vivemos num mundo onde só interessa a porra do dinheiro. Que se tem, que se gostava de ter. Onde ecoam frases acéfalas como "mais vale um farto que dois famintos", como se o que farta um não desse para satisfazer dois. Oxalá morram de enfarte, esses fartos todos mais as putas das mães deles, egoístas sem nome.
Este tema leva-me sempre para um nível de violência que custo a aceitar em mim mesma. Mas prontos...
Olha, obrigada pelo aviso. Nunca verei tal filme. Se alguém me tivesse avisado assim sobre a lista de Schindler escusava de ter chorado tanto por causa da menina do vestidinho vermelho.
Cada vida é um universo, e a perda de uma delas compromete o todo, sendo que destroi em si a possibilidade de uma nova versão dele.

Abobrinha disse...

Marycarmen

Eu senti-me incomodada por ter votado como votei. Sei que se paga indevidamente coisas para ter filhos e acho que o acesso ao aborto devia estar mais controlado. Há quem pense que mulher nenhuma quer abortar, mas eu sou um bocadinho mais sensata: há quem não queira saber e só estava à espera que fosse à borlix.

Um dia estava a conversar com uma médica que disse que nos hospitais já tiveram montes de casos de mulheres que foram para abortar, mas desistiram (e tiveram mesmo o filho) depois de uma consulta em que foram confrontadas com a decisão. Por essas vidas que não se perderam valeu a pena... pelo menos só um bocadinho, não?

Anónimo disse...

Eu comecei por dizer que concordava contigo, não foi?
Mas é um raio de um tema triste, e eu fico sempre inflamada demais quando me aproximo dele.
Sim, por essas vidas que não se perderam, valeu a pena. Principalmente porque não se perderam por a mulher ter encontrado em si espaço para esse filho, que é sempre uma primeira vantagem para uma criança que chega ao mundo.